
Memória
Vida e legado de Dona Izabel
Exposição que celebra centenário da mestra ceramista do Vale do Jequitinhonha pode ser vista até abril de 2025
Laura Baraldi e Thais Nascimento
Reconhecida pelo talento para modelar o barro, por ter criado as famosas bonecas-moringa e por ser uma verdadeira mestra da arte ceramista em seu território, Dona Izabel se tornou um ícone não só do Vale do Jequitinhonha, sua terra natal, mas da arte popular brasileira. Para celebrar o centenário da “Dama do Barro do Jequitinhonha”, a exposição Dona Izabel: 100 Anos da Mestra do Vale do Jequitinhonha foi aberta no mês de agosto, no Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB), no Rio de Janeiro. A exposição é uma iniciativa do Sebrae Minas e do CRAB, em parceria com o Conselho das Artesãs do Vale do Jequitinhonha e com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (SEDE-MG), por meio da Diretoria de Artesanato. Com mais de 300 obras expostas, a mostra é uma homenagem à vida e ao legado da artesã, uma oportunidade de reviver a sua história e de entender a importância dessa arte, que deu visibilidade à cultura do Vale do Jequitinhonha.
Superação e criatividade

Crédito: Divulgação
O artesanato em cerâmica do Vale do Jequitinhonha surgiu como forma de resistência e sobrevivência, principalmente para as mulheres da região. Foi assim com Izabel Mendes da Cunha, nascida em 3 de agosto de 1924 em Córrego Novo, uma pequena comunidade rural próxima a Itinga. Com a mãe, que era “paneleira”, ela descobriu a arte com o barro ainda na infância, em Santana do Araçuaí, onde passou boa parte da vida.
Depois que ficou viúva, ainda jovem, Dona Izabel encontrou no barro o sustento de seus quatro filhos. Com ferramentas simples, como sabugos de milho e pedaços de coité, e utilizando pigmentos minerais que ela mesma produzia, a artesã transformava o barro em utensílios do dia a dia e em obras singulares. Diariamente, ela percorria 11 quilômetros até a rodovia mais movimentada da região, carregando peças para vendê-las à beira da estrada.
O nome “coité” vem do tupi e significa vasilha ou panela, motivo pelo qual esta planta é também conhecida como cuieira, cuia ou cabaça. Sua madeira, dura e forte, é utilizada na produção de vasilhames e instrumentos musicais, como o berimbau.
E Dona Izabel repassava seus saberes a quem tivesse interesse em aprender a arte com o barro, como relembrou Glória Maria, uma de suas filhas e também artesã, em entrevista à Revista Histórias de Sucesso no ano de 2022. “Tinha gente que chegava perto da minha mãe e falava ‘ah, eu não vou conseguir aprender’ e ela falava ‘vai lá em casa que eu vou te ensinar’. Ela, que passou esse dom para nós e para todo mundo que quis aprender, ensinava as pessoas com aquele carinho, boa vontade e paciência que quem conheceu sabia como era.”
Na década de 1970, a arte de Dona Izabel ganhou um novo patamar com a criação das icônicas bonecas-moringa, inicialmente concebidas como recipientes para água. A artesã destacou-se pelo talento de transformar objetos utilitários em esculturas artísticas e com marcas bastante específicas, que permitem distinguir seu trabalho. “Ela criou uma forma muito particular de adorno das peças, ora com alto relevo, ora com baixo relevo ou carimbos. As formas nascem das bonecas, depois vêm os bichos e as moringas”, conta a designer Paula Dib, que tem conduzido consultorias de arte e design com as artesãs do Vale.
Legado
Dona Izabel faleceu em 2014, aos 90 anos, deixando um legado inestimável para o artesanato brasileiro e mundial. Não à toa, foi reconhecida com o Prêmio Unesco de Artesanato Popular para a América Latina e Caribe, a Ordem do Mérito Cultural e o Prêmio Culturas Populares do Ministério da Cultura do Brasil MinC. Sua obra, que em 2016 foi celebrada com uma série especial de selos postais emitida pelos Correios, continua a ser uma referência para diversos artesãos, e sua influência ainda se reflete nas obras criadas por novas gerações.
Glória Maria rememorou a trajetória da mãe e como seu legado a influenciou em seguir a carreira de artesã. “Minha mãe criou quatro filhos com o barro e foi por meio do barro que sustentei meus filhos. Minha filha, desde pequena vendo o meu exemplo, do pai e da avó trabalhando com o barro, continua com a tradição.”
Alexandre Rousset, arquiteto que também tem conduzido as consultorias de arte e design junto às artesãs, conta como a influência de Dona Izabel ainda é viva. “Muitas artesãs tiveram contato direto com ela, apenas as mais novas que não. Mas todas carregam no discurso a convicção de que elas aprenderam a arte com a Dona Izabel.”

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Andreia Andrade, neta de Dona Izabel, compartilha a emoção de ver a arte de sua avó sendo celebrada em uma grande exposição. “Minha avó foi uma referência não só para mim, mas para toda uma comunidade. Ela deixou um patrimônio muito lindo, e eu me orgulho muito de fazer parte dessa história. A exposição no Rio foi um privilégio e um momento de muito orgulho para nossa família. Hoje, meu filho Mateus, de 9 anos, já segue aprendendo a arte de fazer bonecas de barro, e isso me emociona.”
Andréia também ressalta a importância de preservar a arte e a cultura do Vale do Jequitinhonha, explicando que, por meio do artesanato, não se transmite apenas uma peça de barro, mas sim toda a história, tradição e vivência de uma comunidade. “Quando alguém compra uma peça, essa pessoa leva consigo toda a história de nossa comunidade. O barro não é só um pedaço de terra modelado, é a nossa história, os nossos sonhos, as nossas memórias”, afirma.
A exposição e o fortalecimento do Vale
A exposição que marca o centenário de Dona Izabel divulga o seu legado para a cultura do Vale do Jequitinhonha e do Brasil. “O evento é uma homenagem ao centenário de nascimento desta mestra que foi essencial para a preservação e promoção da arte de trabalhar o barro”, ressalta Amanda Guimarães, analista do Sebrae Minas.

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Ricardo Lima é o curador da exposição e conta como idealizou a homenagem. “No decorrer da mostra, procuramos mostrar o contexto em que Dona Izabel vivia e a sua importância”. Ele relata que, na primeira sala, há uma boneca-moringa com um pássaro na mão, feita pela própria artista, além de outras três peças feitas por moradores da comunidade, seguindo o estilo de Dona Izabel, depois de sua morte. “Isso significa uma consagração de Dona Izabel pelos próprios pares.”
A exposição apresenta o contexto do Vale do Jequitinhonha na década de 1970, quando detinha um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) - indicador que mede o progresso de um país em termos de desenvolvimento humano, calculado com base em parâmetros como renda, educação, saúde, esperança de vida e natalidade. - do Brasil, por meio de objetos que eram utilizados na oficina de Dona Izabel, relatos de colecionadores, impactos de arte em todo o território, entre outros. Ao final, recursos de inteligência artificial simulam uma conversa entre Dona Izabel e uma boneca, além de mostrar as características das comunidades que compõem a marca-território Vale do Jequitinhonha.
Ricardo ressalta também os impactos da arte de Dona Izabel no mundo. “O que nos importava mostrar na exposição é como a obra de uma mulher nascida em zona rural, com poucos recursos financeiros, é capaz de impactar uma região inteira e o mundo, além de produzir uma das artes mais significativas que temos no país.”
A exposição reuniu trabalhos de 150 artesãs do Vale do Jequitinhonha. Até o mês de dezembro, mais de 100 mil visitantes já tinham passado por lá, gerando R$ 200 mil em vendas.
O olhar da atriz Marieta Severo
O artesanato do Vale do Jequitinhonha conquistou admiradores no Brasil e no mundo. Um deles é a atriz Marieta Severo, cujo encantamento começou há mais de 50 anos, quando ela se apaixonou pelas bonecas-moringas de Dona Izabel. "Eu tinha cerca de 20 anos quando comecei a me interessar por esse tipo de artesanato. Para mim, as peças não eram apenas objetos, mas algo que me tocava profundamente. Eu simplesmente queria tê-las comigo", lembra Marieta.

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Ao longo do tempo, a atriz reuniu uma coleção de mais de dez peças de Dona Izabel, além de obras de diversos artistas brasileiros. Marieta Severo conta que cada peça tem um espaço especial em sua casa. "Minhas bonecas ficam expostas no alto de uma estante. Eu olho para elas todos os dias, fazem parte da minha vida."
Em agosto, a atriz prestigiou a inauguração da exposição de Dona Izabel, para a qual cedeu uma das peças de sua coleção. E falou sobre a emoção de estar com a família da ceramista. “Senti que toda a história que vivi com essas peças, que para mim têm um significado muito pessoal, ganhou uma nova dimensão", conta.