Artesanato
Saber transmitido de geração em geração
Marca território valoriza a arte do Vale do Jequitinhonha e confere visibilidade às artesãs locais
Fernanda Pereira
Uma das grandes referências culturais de Minas Gerais, o artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha tem sido transmitido de geração em geração. Moldadas por mãos habilidosas, as peças traduzem cenas do cotidiano, vivências, sentimentos, crenças e saberes populares da região. Além de preservarem a identidade cultural do território, geram renda não apenas para os artesãos, que são 99% mulheres, mas para empreendedores que atuam em outras atividades, relacionadas ou não ao artesanato.
O trabalho realizado pelas artesãs ganhou um importante reforço em 2021, quando foi criada a primeira marca território voltada para o artesanato no estado: a Vale do Jequitinhonha. Desenvolvida pelo Conselho das Artesãs do Vale do Jequitinhonha, em parceria com o Sebrae Minas, a iniciativa contribui para divulgar a origem do produto, dar notoriedade à região e estimular a atividade como fonte de renda, aumentando assim sua valorização no mercado.
O Sebrae Minas apoia um grupo de cerca de 120 artesãs das comunidades de Coqueiro Campo e Campo Alegre (distritos de Turmalina), Cachoeira do Fanado (distrito de Minas Novas) e Santana do Araçuaí (distrito de Ponto dos Volantes). As primeiras ações foram direcionadas ao fortalecimento da governança, com a formação do Conselho das Artesãs do Vale do Jequitinhonha. Em paralelo, foram realizadas atividades de capacitação em design e melhoria de processos, além de iniciativas para ampliar o acesso a mercados consumidores, por meio da participação em feiras e eventos nacionais do setor. “Nosso objetivo é incentivar as artesãs a explorar todo o seu potencial, para fortalecer a sua identidade”, afirma o analista do Sebrae Minas Julian Silva.
Segundo ele, as estratégias para a geração de valor embasadas na origem partem da percepção de que os consumidores estão cada vez mais atentos à história por trás dos produtos. “Quem compra uma peça de cerâmica leva em conta não só a qualidade e a beleza, mas a tradição que ela carrega, que também contribui para valorizá-la. Ao evidenciarmos a história da comunidade que a originou e do seu processo produtivo, agregamos valor ao que é produzido”, diz.
O analista lembra que foi desafiador realizar o trabalho durante a pandemia, principalmente pela impossibilidade de a equipe atender às artesãs pessoalmente. “Em contrapartida, atuamos em um momento muito oportuno, em que as pessoas se voltaram mais para o cuidado com a casa, a decoração, e passaram a consumir mais objetos de arte e artesanato”, afirma.
Para Amanda Guimarães, analista do Sebrae Minas, os bons resultados da iniciativa já podem ser sentidos e vão além do setor artesanal. “A estratégia de identidade e origem valoriza o artesanato, melhora a qualidade de vida dos artesãos e gera um círculo virtuoso de desenvolvimento, tornando mais dinâmica toda a economia do território”, avalia.
Saber preservado
A artesã Izabel Mendes, de Santana do Araçuaí, mais conhecida como Dona Izabel, é umas das grandes referências do artesanato do Vale do Jequitinhonha. Falecida em 2014, ela transmitiu a seus sucessores técnicas de moldagem e pintura de bonecas de barro que se tornaram conhecidas em toda a região. Andreia Andrade mantém vivo o saber herdado da avó. Formada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), ela conta que custeou seus estudos e suas despesas em Belo Horizonte exclusivamente com a renda das bonecas. E que enfrentou desafios para expor e comercializar seu trabalho. “Com o apoio do Sebrae Minas, participamos de várias palestras e conseguimos divulgar melhor nosso trabalho nas mídias digitais. Tudo feito de uma forma muito respeitosa, preservando a originalidade da nossa arte”, diz Andreia, que faz parte da Associação dos Artesãos de Santana do Araçuaí.
A capacitação, a propósito, é um dos pontos fortes do projeto da marca território. “É essencial auxiliar as pessoas a encarar o mercado sem a dependência de atravessadores para o escoamento da produção”, pondera Julian Silva. Atendimento ao cliente, marketing digital, gestão, precificação e vendas, entre outros, foram alguns dos temas trabalhados pelo Sebrae Minas com os artesãos.
É essencial auxiliar as pessoas a encarar o mercado sem a dependência de atravessadores para o escoamento da produção
Julian Silva
Analista do Sebrae Minas
Continuidade
Assim como Andreia, Alice Ribeiro integra a Associação dos Artesãos de Santana do Araçuaí. O contato com o barro começou na infância, no sítio da família, quando a mãe transformava a matéria-prima em peças utilitárias. Em 2002, ela perdeu o emprego e encontrou no artesanato uma alternativa de renda. Para isso, contou com a ajuda e os ensinamentos da irmã, Ana, outra aprendiz de Dona Izabel. “Era muito difícil moldar um rosto, só consegui fazer uma boneca depois de muitos meses, mas fui pegando gosto”, conta.
Um dos filhos de Alice, Augusto, com apenas quatro anos à época, a acompanhava nas aulas e lá teve contato com as primeiras lições. “Ele trocou os brinquedos pelo barro e, assim, aprendeu junto comigo. Hoje, aos 23 anos, ele estuda Artes Plásticas em Belo Horizonte e se mantém com a venda das peças que produz, usando o barro daqui”, afirma a artesã. A própria Alice mudou de vida com o artesanato: voltou a estudar, se formou em História e passou a lecionar em meio período. No tempo restante continua se dedicando às cerâmicas. “Produzir a minha arte é o que me dá mais prazer, e muito do que conquistei eu devo ao barro.” Com orgulho, ela vê os outros filhos, Pedro e Mariana, seguindo o seu caminho e o do irmão.
Como tesoureira da Associação, a artesã tem a oportunidade de acompanhar mais de perto o trabalho de valorização desenvolvido pelo Sebrae Minas. “Tínhamos dificuldade até para calcular o preço de uma peça, e o Sebrae nos auxiliou a valorizar nosso trabalho. Temos evoluído muito na parte de divulgação e marketing. Hoje, quem compra nosso artesanato leva junto a nossa história”, diz.
Mais visibilidade
Além da parceria para o desenvolvimento da marca território, o Sebrae Minas tem atuado em iniciativas de apoio ao acesso a mercados, conferindo visibilidade às artesãs do Vale do Jequitinhonha em grandes eventos do setor. Terezinha Gomes Barbosa é uma das que se beneficiaram dessas ações, junto com outras colegas da Associação dos Artesãos de Minas Novas.
“Antes não tínhamos condições de ir a feiras, pois a Associação é pequena e não tem recursos suficientes. O Sebrae nos trouxe essa oportunidade, e temos aproveitado para conhecer pessoas e fazer contatos”, relata. O networking tem tornado o trabalho de Terezinha cada vez mais conhecido, e ela vem se desdobrando para atender encomendas de várias partes do país. A mais recente veio de um lojista da Região Metropolitana de Belo Horizonte: 80 bonecas, 75 moringas e 200 copos. Há oito anos, Terezinha vive exclusivamente da renda obtida com a cerâmica.
Anísia Lima dos Santos, de Campo Alegre, também comemora os resultados conquistados com o artesanato. Ela começou a moldar peças de barro aos oito anos, vendo a mãe trabalhar. Hoje, aos 51, comanda a produção do ateliê onde também trabalham o marido, a filha e o genro. Eles produzem potes, filtros, bonecas, boleiras, moringas de água e outras peças decorativas e utilitárias. “Com o apoio do Sebrae, tudo mudou. Participamos dos cursos de capacitação e começamos a evoluir. Acredito que a marca território fortalece muito a nossa presença nos eventos, pois confere profissionalismo e dá mais visibilidade ao nosso trabalho”, afirma.
Próximos passos
De acordo com Julian Silva, o trabalho ainda está em fase de ativação da marca, ou seja, de promover experiências com os lojistas e com o público consumidor, além de ampliar o reconhecimento do trabalho por meio da interação com os artesãos e seus produtos. “A meta é encantar o mundo com a cultura e a arte do Jequitinhonha, tornando-as cada dia mais reconhecida!”, enfatiza.
Ele afirma que entre os próximos passos do plano estratégico está a intensificação das capacitações das artesãs em temas como qualidade, design, mercado e sustentabilidade, além de ações voltadas para o território. Serão envolvidos segmentos complementares ao artesanato, como o turismo, que tem um impacto direto no desenvolvimento da região. “Vamos escrever uma nova história para o artesanato e para as pessoas do Vale do Jequitinhonha”, acredita Julian.
VOCÊ SABIA?
A CULTURA POPULAR DA ARTE EM BARRO FOI RECONHECIDA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DE MINAS GERAIS PELO INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO (IEPHA-MG) EM 2018.